domingo, 29 de agosto de 2010

Os anos 80 - parte 3

ROCK BRASIL

    Nos últimos meses de 79, ainda era difícil imaginar o que o rock reservava para a música do Brasil nesta década. A MPB ainda queimava os últimos cartuchos de sua derradeira grande era, mas uma certa perplexidade já parecia afligir os "grandes" - Caetano, Gil e Chico começavam a tropeçar em problemas de identidade e modernização de seus recursos de produção, e preparavam-se para mergulhar em suas respectivas piores fases... Iniciava-se o ciclo das cantoras - Joanna, Simone, Bethânia, a Gal menos criteriosa -, na verdade um preâmbulo para o pesadelo brega. O único farol do período é o LP Rita Lee, coleção de pérolas pop em que a ex-mutante incitava, pela segunda vez em sua carreira, à mudança: deboche e romantismo em embalagem semi-tecno. "Mania de Você" e "Lança Perfume", do disco seguinte, seriam os hits instantâneos que fariam escola entre roqueiros da próxima geração. Um verdadeiro antídoto para a síndrome "progressiva" que derrubou nove entre dez roqueiros da antiga, inclusive os pseudo-Mutantes (sem Arnaldo e Rita) de Serginho Dias.
    Com um atraso que variou de um a quatro anos, os ecos do cataclisma punk foram se fazendo ouvir nos porões das capitais. Do pessoal bem-informado e sedento de novidades de Brasília (que em meados de 78 já promovia suas primeiras apresentações de punk rock) aos subúrbios de São Paulo (onde a composição social das gangues conferia verdadeira fúria ao movimento), de Salvador a Porto Alegre e Belo Horizonte, o recado de Johnny Rotten seria recebido, entendido e correspondido. Grilo Suburbano (82) é o primeiro registro punk no vinil, com os paulistas Inocentes, Olho Seco e Cólera. Mas o clímax do movimento é o festival O Começo do Fim do Mundo, uma batalha campal entre punks e policiais no Sesc-Pompéia (SP), cuja gravação também se tornaria um LP.
    É em São Paulo que a palavra "independente" assume um papel de destaque na música brasileira. Para além dos punks, o selo e teatro Lira Paulistana centralizou no início da década trabalhos de apelo universitário, como o pop dodecafônico de Arrigo Barnabé, a sátira culta do Premê ou o jazz erudito de Lelo Nazário. O pioneirismo acabou punido com a extinção do Lira, que legou para a posteridade o som de Itamar Assumpção, mestre da poesia urbana e dos ritmos negros. Também pelo Lira foi lançado o curioso LP do artista plástico Aguillar, acompanhado por dez músicos - entre eles Lanny Gordin (o guitarrista da Tropicália) e os futuros Titãs Miklos e Arnaldo. Exceção num cenário de bandas "à inglesa" - pequenas, unas e aguerridas, como rezava a cartilha punk - a Banda Performática foi uma experiência "nova-iorquina": cheia de referências às artes visuais, ecléticas. Talvez essa origem possa explicar a inusitada e competente esquizofrenia dos Titãs...

    Nada menos provável do que o surgimento de novidades no MPB-Shell, um festival de cartas marcadas, caricatura daqueles que agitavam a massa nos anos 60. Mas foi o que aconteceu em 81, quando Júlio Barroso e sua Gang 90 & As Absurdettes fizeram de "Perdidos na Selva" o primeiro hit "new wave" do país. Na verdade, o roqueiro carioca já vinha lançando a moda, como DJ e band leader, em casas noturnas como Noites Cariocas e Paulicéia Desvairada, nas duas capitais. "Perdidos na Selva", porém, ainda é um caso isolado na programação das FMs. Imperava, então, como "rock", o híbrido de pop com brega de má extração praticado por grupos de veteranos como o Rádio Táxi ou o Herva Doce.
    Hora, proposta e lugar certos - a química perfeita foi engendrada pela Blitz, que deflagrou logo no início de 82 uma revolução na indústria fonográfica. Uma apresentação no Circo Voador - celeiro de todas as bandas cariocas do período - e um compacto executado em primeira mão pela Fluminense FM (a primeira e mais importante rádio alternativa da década) abriram caminho para o estouro da banda. "Você Não Soube Me Amar", com seu humor típico e suas frases de efeito, é mais um marco nessa história.
    As seiscentas mil cópias vendidas do compacto da Blitz indicaram o caminho para as gravadoras, que recorreram aos "paus-de-sebo" para tentar localizar novas minas de ouro. O primeiro passo capitalizou a agitação do Circo: Rock Voador traz, entre uma leva de nomes inexpressivos, o primeiro hit do Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, "Pintura Íntima", ainda em 82. O pop carioca que invade as rádios é rapidamente rotulado pela mídia como new wave - ou "niuêive", como diria Lulu Santos, um dos responsáveis pelo ressurgimento do gênero em sua melhor forma, no ano de 83. A zen-surfista "Como Uma Onda" é a música do ano ao lado de "Menina Veneno", de seu ex-parceiro Ritchie. Um ano mais tarde seria a vez do Kid Abelha assumir o papel de baluarte do pop radiofÔnico com um LP, Seu Espião, que emplacou nada menos que sete hits - um fenômeno, mesmo se considerado em escala mundial.
    Correndo por fora na onda nova, São Paulo entra na brincadeira com o sucesso isolado de "Sou Boy", do Magazine, uma das apostas locais da WEA, ao lado do Ira!, Agentss, Azul 29 e Ultraje a Rigor. Na verdade as quatro bandas eram apenas uma pequena amostra da enorme movimentação pós-punk, em casas noturnas como o pioneiro Napalm (por sinal o primeiro local onde uma banda como a Legião se apresentou na cidade, e que seria, após curta existência, sucedido pelo Madame Satã). É também o momento em que tanto vigor começa a se chocar com as intenções comerciais da indústria, disposta a dividir para reinar. Não só dividir as bandas entre as contratadas e as "outras" - as que se atreveram a lançar discos independentes foram estigmatizadas para sempre. Houve mesmo o caso de sabotagem, em que decidiu-se na diretoria de uma grande gravadora dificultar ao máximo o lançamento de um modesto LP independente, atrasando sua prensagem durante um ano. Mas também dividir seu próprio cast, mantendo certos contratados "no limbo". O próprio Ira!, antes de alcançar o sucesso, esteve a ponto de ser extinto, amargurado por mais de dois anos no banco de reservas.
    As casas noturnas do sendo substituídas pelas danceterias, a febre de 84. Os pequenos e médios cenários dançantes são perfeitos para a afirmação de grupos como o RPM - ainda em início de carreia - ou os Paralamas, que aproveitam o mega-hit de seu segundo LP, "Óculos". É o Ultraje que mais se beneficia da moda. A música de seu compacto de estréia, "Inútil", se tornaria uma espécie de hino político, e ponta-de-lança da explosão do grupo após sua execução, pelos Paralamas, no Rock in Rio. Mas todo um repertório de hits burilados e consagrados em apresentações ao vivo transformaram Nós Vamos Invadir Sua Praia num LP fadado ao sucesso.

    Na tela grande, o rock também tem vez: o casamento rock/cinema é plenamente realizado em Bete Balanço, de Lael Rodrigues. O tema principal do filme projeta nacionalmente o Barão Vermelho. Uma tentativa menos feliz, Areias Escaldantes, tem o mérito de registrar o início da ascenção da banda que só emplacaria dois anos depois: os Titãs. Por enquanto, eles contam apenas com um sucesso da fase metabrega, a radiofônica "Sonífera Ilha".

    O ano de 85 completa a tomada total do cenário. Logo em janeiro, o Rock in Rio apresenta, numa maratona de dez dias, opções para todos os gostos, de Iron Maiden a Nina Hagen, de Rita Lee à Blitz. Além do ecletismo, o festival traz a polêmica sobre um suposto boicote técnico aos artistas brasileiros, que se queixavam de problemas com som e luz. A organização alegou inexperiência de músicos e operadores nacionais em eventos desse porte. Fato ou boato, o Rock in Rio consagrou definitivamente os Paralamas e introduziu o país no circuito internacional de shows.

    Um outro fenômeno, protagonizado pela Legião Urbana - que emplacou o hit "Será" como carro-chefe de seu primeiro LP -, seria o surgimento na mídia nacional de bandas alheias ao circuito Rio-São Paulo. Na Bahia, o Camisa de Vênus arrasta multidões a cada show, mesmo sem o apoio promocional de uma grande gravadora. É o resultado do trabalho de Marcelo Nova desde o início dos anos 80, sacudindo o cenário de Salvador com sua banda de atitude punk e seu programa de rock na Rádio Aratu, passando pelo primeiro compacto independente ("Primo Zé"/"Controle Total") já em 82. Outro selo independente, o Baratos Afins, de São Paulo - que já havia lançado em 81 o segundo disco-solo de Arnaldo Baptista, e em 84 o LP dos Voluntários da Pátria (banda que foi celeiro de músicos das Mercenárias, Smack, Fellini, Zero, Akira S e Ultraje) -, acelera sua produção. São lançadas sucessivamente as coletâneas SP Metal e Não São Paulo, LPs do Smack e do Fellini. Um caminho que seria seguido, nos próximos anos, por novos selos como o Wop Bop (May East, Harry, Violeta de Outono, Vzyadoq Moe) e o Vinil Urbano (Arnaldo e a Patrulha do Espaço, Maria Angélica), além de outros como Ataque Frontal e Devil Discos.

    No Rio, o "Tédio" do Biquini Cavadão convive com "A Fórmula do Amor" de Léo Jaime e Kid Abelha. De São Paulo vêm o Metrô com "Beat Acelerado" e o RPM, abrindo caminho com "Loiras Geladas", até chegar ao álbum de estréia. Ainda no final de 85, iniciam a turnê Rádio Pirata, com shows cada vez mais concorridos, que os levariam em 86 a um estrondoso sucesso popular. Com o show registrado no disco Rádio Pirata, o RPM conseguiria outra façanha: sucesso de vendas com um segundo LP que praticamente se limita a reproduzir, ao vivo, o repertório do primeiro. Se deu certo como recurso comercial, o truque - inédito na indústria fonográfica mundial - também marcou o início da melancólica perda de credibilidade da banda.
 
    Outras estrelas de primeira grandeza ascendem num ano favorecido pelo novo plano econômico. O segundo LP da Legião, Dois, e o terceiro dos Titãs, Cabeça Dinossauro, representam marcos na carreira das bandas e do próprio rock brasileiro. O disco dos Titãs casa, curiosamente, uma excelência técnica raramente alcançada em discos nacionais - som limpo e pesado e arranjos objetivos, resultado da colaboração da banda com o produtor Liminha - com uma temática "apunkalhada" proposta bem antes por bandas como os Inocentes e as Mercenárias. Uma ponte oportuna, aclamada pelo público. O sucesso da Legião, por outro lado, lança as gravadoras à caça de novas bandas brasilienses com o mesmo potencial. As primeiras contratadas seriam a Plebe Rude e o Capital Inicial, mas o certo é que o talento de Renato Russo não se prende a questões geográficas...
    Outra investida, desta vez rumo ao sul, é a do selo Plug (BMG-Ariola), que aposta em 87 no som vindo dos pampas, Engenheiros do Hawaii à frente. É a descoberta de um cenário fértil, que vivia desde 84 o explosivo movimento que chegou a fazer um hit independente, o "Surfista Calhorda" dos Replicantes - dando impulso ao selo Vortex, pioneiro na distribuição do trabalho de bandas inéditas em fita cassette. Dezenas de grupos fizeram a cena, com destaque para DeFalla, Julio Reny & O Expresso Oriente e A Vingança de Montezuma. (Além dos gaúchos, o Plug proporcionaria, mais tarde, trabalhos inusitados como o dos cariocas Black Future, antes de uma retração quase total em fins de 88).

    Paradoxalmente, toda a abertura de possibilidades de 87 correspondeu a um estreitamento do mercado. Nas rádios, cada vez menos hits roqueiros sobrevivem a uma programação onde o brega passa a predominar. "Flores em Você", na abertura de uma novela das oito, dá ao Ira! uma inesperada projeção global. "Kátia Flávia" apresenta ao grande público o rap branco de Fausto Fawcett. Mas, no geral, o ano só confirmou sucessos já conquistados: a Legião faz meio mundo cantar a letra quilométrica de "Eduardo e Mônica" (e repetiria a dose, em 88, com o "Faroeste Caboclo"): os Titãs deixam para o final do ano o lançamento do novo disco, Jesus Não Tem Dentes..., aproveitando a permanência nas paradas de músicas como "Polícia", "AAUU" e "O Que": o Ultraje ataca de "Pelado", "Eu Gosto É de Mulher", puxando o LP Sexo!!! Os Paralamas inauguram uma carreira internacional no Festival de Montreux - onde gravam D, LP ao vivo -, passando por Paris e capitais da América do Sul. Com "Rádio Blá", Lobão reedita o sucesso de 84 ("Me Chama", que chegou a ser regravado por João Gilberto). Lobão também amarga alguns meses na prisão, como o titã Arnaldo amargara no ano anterior.

    Seguindo a trilha de Siouxsie e seus Banshees, que vieram no final de 86, finalmente desembarcam em solo pátrio Ramones, Cure, Echo, PIL, B.A.D., Bolshoi, Sting, Kid Creole, Phillip Glass, King Sunny Adé e até Brian Eno. Para além da chance de conferi-los ao vivo, os shows proporcionam o lançamento de vários discos dos artistas. No começo de 88, o bem organizado Hollywood Rock trouxe ao Rio e São Paulo Duran Duran, Pretenders, UB40, Simple Minds, Simply Red e Supertramp, dividindo o palco com artistas nacionais, entre os quais se destacam, em pé de igualdade com os estrangeiros, os Titãs e os Paralamas. Coroando o ano, Direitos Humanos Já é um único concerto que reúne, em São Paulo, Sting, Bruce, Peter Gabriel, Youssou N´Dour, Tracy Chapman e Milton Nascimento. Nesse meio tempo, Tina Turner, Exumer, James Brown, Toy Dolls, Mission, Jethro Tull, Gene Loves Jezebel, Might Lemmon Drops, Iggy Pop, Church e o New Order, num fluxo significativo, confirmaram, em eventos bem dimensionados e em geral bem sucedidos, que está aberto o caminho da roça.

    Do Rio desponta como novidade o sucesso de artistas solo: Ed Motta e Marisa Monte (esta, seguida de Adriana Calcanhoto, parece prefigurar um novo ciclo de cantoras...). É também solo o grande destaque de 88, Cazuza, com o LP Ideologia. Os Engenheiros do Hawaii são alçados ao primeiro escalão com o LP Ouça O Que Eu Digo... Fechando o círculo, os Titãs gravam em Montreux o LP Go Bach, reciclando ao vivo músicas já gravadas, como a faixa-título e "Marvin". A última jazida local a ser explorada é a do rock mineiro, também ativa desde 83 ou 84, da qual nos chegam o Último Número (com bons LPs independentes em 87 e 88) e o Sexo Explícito, "queimado" na reviravolta do selo Plug, que promete para breve seu já tardio primeiro álbum. Mas isso já é (quase) outra década...
    Por mais estranho que pareça, o heavy metal nacional nunca esteve tão bem. Mesmo sem ter espaço na mídia e passando longe da programação das casas noturnas, continua, com seus fiéis seguidores, rumo ao mercado internacional.
    O destaque fica com a banda Sepultura, que teve seu terceiro LP Beneath the Rimains editado nos EUA e Europa, além de figurar nas principais revistas especializadas do gênero.
    Aqui, alguns selos tentam abarcar o número crescente de bandas, caso do Rock Brigade que edita também a única publicação sobrevivente; da loja Woodstock que além dos lançamentos internacionais, é responsável pelo programa rádio-fônico Comando Metal, ambas em São Paulo e a Cogumelo, de Belo Horizonte (celeiro inicial do Sepultura).
    Nos últimos anos, os palcos brasileiros estremeceram ainda com os shows do Venom, Exumer, Nasty Savage, e Motorhead. Para headbanger nenhum botar defeito.

    Deixando a sazonalidade carnavalesca e invadindo todos os dias do ano, uma nova música baiana vem marcando presença desde 86. Depois de tomar conta de Salvador, através da consolidação de um mercado local (desde estúdios de gravação às programações de FM e TV) os blocos e bandas afro-baianos conquistaram outras capitais. Com uma mistura pop de samba, reggae e ritmos africanos, em nomes como Reflexu´s, Olodum, Araketu, Geronimo e Chiclete com Banana, seus LPs foram lançados por grandes gravadoras, alcançando sucesso em vendas e farta execução nas rádios. Um verdadeiro fenômeno, como há muito não se via no mercado nacional.
    A cultura hip hop saiu dos guetos nova-iorquinos e veio parar no Brasil. Até a hermética programação das FMs cedeu horários especiais ou até a rádio inteira, como é o caso da Bandeirantes FM (SP). Na mesma cidade, há mais de quatro anos, a estação de metrô São Bento transformou-se em ponto de encontro de breakers, rappers e DJ´S.

    O primeiro registro fonográfico surgiu no final do ano passado com a coletânea Cultura de Rua, reunindo os grupos Credo, Código 13, MC Jack e Thaíde, pelo selo Eldorado. Logo depois, a gravadora CBS apostou n´ O Som Das Ruas apresentando Os Metralhas, Sampa, Crew, De Repent, entre outros.
    Ainda em 88´ em plena onda hip hop, Kurtis Blow, Kool Moe Dee, Whoodini e a Boogie Down Productions fizeram shows em solo nacional, reforçando a iniciativa das gravadoras em lançar títulos do gênero.
    Vale lembrar que, anos atrás, o break contagiava os dançarinos de rua e o rap já tinha lugar marcado nos bailes de periferia, nos quais diversas equipes de som - entre elas, Furacão 2000 (RJ) e Chie Show (SP) - sempre procuraram sintonizar as últimas novidades do pop negro internacional.

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